Jonathan Glazer mostra que também é possível filmar horror ao lado de Auschwitz
Armado com um bisturi, o diretor britânico Jonathan Glazer mostra com o filme "The Zone of Interest" a banalidade diária dos encarregados pelo campo de extermínio de Auschwitz, um longa-metragem arrepiante apresentado, nesta sexta-feira (19), no 76º Festival de Cannes.
O longa, que disputa a Palma de Ouro, retrata a vida do comandante do campo de concentração, Rudolf Hoss, e de sua família, em uma confortável casa com um enorme jardim bem ao lado de Auschwitz.
Do outro lado do muro podem veem-se colunas de fumaça e, ao fundo, ouvem-se tiros, às vezes, gritos e insultos.
Hoss trabalha demais, enquanto sua esposa cuida da casa e de seu belo jardim.
As crianças, vestidas em algumas ocasiões como membros da Juventude Hitlerista, brincam com soldadinhos de chumbo e, em alguns momentos, com dentes humanos.
Na obra cinematográfica, não há sequer um plano de violência. Tudo é indireto, sugerido, mas não por isso menos tenebroso.
- "Até que ponto somos como eles" -
A "zona de interesse" era a maneira como os nazistas denominavam a área de aproximadamente 40km² ao redor do enorme complexo de Auschwitz.
O filme é inspirado em um romance do britânico Martin Amis, e foi rodado em alemão. Destaca-se a esposa do comandante, interpretada pela atriz Sandra Huller ("Toni Erdmann").
Quando Hoss é convocado pelo estado-maior alemão para assumir maiores responsabilidades, sua esposa prefere ficar com as crianças nessa casa de ambiente esquizofrênico, em cujas janelas se refletem, às vezes, as chamas do enorme crematório, funcionando dia e noite.
Jonathan Glazer é judeu e explicou à AFP que há anos queria explorar essa "banalidade do mal", um termo que a filósofa e escritora Hannah Arendt tornou conhecido.
"Como conseguia dormir? O que acontece se fechar as cortinas e colocar tampões nos ouvidos? Tudo tinha que ser minuciosamente calculado", explicou na entrevista.
Glazer colheu boas críticas com o filme "Sob a Pele" (2013), com Scarlett Johansson no papel de uma mulher extraterrestre implacável com os homens.
Outro filme seu, "Reencarnação", com Nicole Kidman (2004), desestabilizava o telespectador com a história de uma mulher que acredita que seu marido morto reencarnou em um menino.
Glazer é conhecido por ter o seu próprio tempo para rodar um longa.
"Medito muito. Reflito muito sobre o que vou fazer, seja bom ou mau. Há muito ruído lá fora, não me interessa contribuir para isso", explica.
"Esse tema em particular é um assunto vasto, profundo, e muito sensível por muitas razões, e não podia abordá-lo de forma casual", acrescentou.
Um dos mais famosos filmes de ficção sobre o Holocausto é a "Lista de Schindler". Foi rodado pelo também judeu Steven Spielberg, que levou décadas para enfrentar o tema.
No caso de Glazer, o catalizador foi o romance de Amis. "Permitiu-me ganhar a distância necessária, diante do fato de estar na mesma casa que o perpetrador" do genocídio, relata.
Após o livro, precisou de dois anos de pesquisas para escrever o roteiro.
"O que motivava essas pessoas eram coisas familiares. Casas bonitas, belos jardins, filhos saudáveis, viver em um lugar bonito", comenta.
"Até que ponto somos como eles? Seria terrível admitir isso. O que nos dá tanto medo de entender?", reflete.
A.Pérez--ESF